Ela era uma menina linda! Tinha cabelos cacheados, castanho-claros feito a mãe. Olhos vivos, alegres, castanhos também. Espevitada e alegre era a felicidade da casa. O pai referia-se a ela como seu tesouro, a luz dos seus olhos, a alegria de sua vida. Dizia que por causa dela tivera forças para seguir adiante desde a morte da esposa, que havia conhecido na adolescência, na escola onde estudavam.
O namoro entre os dois fora longo, desde a escola até a faculdade, onde se formaram juntos. Não se casaram logo. Preferiram esperar uns dois anos após formados para então, com a vida profissional já melhor encaminhada, se casar.
O casamento foi uma festa. Ambas as famílias estavam felizes com a união. Do lado da moça, a família estimava muito o noivo, por quem nutriam afeto especial. Igualmente, na família do noivo, a sua escolhida despertava admiração, por sua beleza, inteligência e sensibilidade. Dizia-se de parte a parte que haviam sido feitos um para o outro, comentando assim:
- Mas que grude, hein?
- Se inveja matasse... Não ia sobrar ninguém – retrucavam bem-humorados.
Quando estavam juntos perguntavam-se:
- Porque será que somos tão apaixonados assim?
Por tamanha afinidade, pensavam que já tivessem se conhecido em vida anterior. Era a resposta que melhor se encaixava com eles.
Casaram-se em julho e aproveitaram o frio para passar a lua de mel na serra, pois gostavam da natureza e da vida ao ar livre.
Ambos queriam ter filhos logo, mas para sua surpresa, a gravidez não veio imediatamente. Tentaram por quase um ano, resolvendo afinal procurar um especialista. Depois de alguns exames foi diagnosticado que ela tinha ovários policísticos, o que dificultava a ovulação. O médico, após exame de ultra-som prescreveu-lhe medicamentos que estimulassem a ovulação, alertando que eram comuns os casos de gravidez de gêmeos na ovulação induzida. Para eles tudo bem, se viessem dois filhos seriam bem vindos. Seguiram adiante.
A moça, que gozava de boa saúde, provinha de uma família onde eram comuns os problemas de pressão, vindo estes se manifestar na gravidez. O médico tomou os devidos cuidados, prescreveu-lhe os medicamentos adequados, recomendou-lhe repouso, que evitasse aborrecimentos e que fizesse dieta.
À medida que a gravidez foi evoluindo o quadro da futura mãe foi piorando. Agravou-se a retenção de líquidos, o inchaço nas pernas e sobrevieram dores na nuca. O médico, atento ao problema, numa época em que não eram tão comuns os aparelhos celulares, deixava com eles os números de telefones fixos de onde estivesse. Recomendou repouso absoluto e duas vezes por mês tinham que retornar ao consultório. Fez de tudo ao seu alcance para não preocupar o jovem casal, mas a verdade é que aquele quadro inesperado causava apreensão a todos.
Quanto ao ginecologista obstetra, não tinham dúvidas: era o melhor da cidade. Ainda assim, resolveram ouvir um outro profissional, que, numa conversa reservada com o marido, enquanto a esposa trocava de roupa com a enfermeira, confirmou o diagnóstico de pré-eclampsia grave, inspirando cuidados tanto para a mãe como para o bebê.
Para a esposa o marido fazia-se de forte inspirando-lhe bom ânimo e cercando-a de cuidados. Não a deixava levantar-se da cama, trazia as refeições para ela na bandeja e quando sua esposa precisava ir ao banheiro a acompanhava, amparando-a em seus braços. De vez em quando lhe dizia:
- Isso tudo vai passar amor! Nós ainda vamos rir muito desta situação.
Por mais que fizesse, a futura mãe, por sentir a gravidade da situação, certa vez ela lhe disse:
- Olha amor! Eu sou a mulher mais feliz do mundo ao seu lado. Tenho vivido os melhores momentos de minha vida, cercada de carinhos seus e de nossa família, mas, se por acaso eu me for, saiba que lhe amei mais do que tudo na vida e que não te esquecerei. Se houver vida do lado de lá, e eu me for, vou ficar lhe esperando.
- Que bobagem amor. Não vai acontecer nada. Nós vamos viver juntos muitos e muitos anos, juntamente com nossa filhinha.
Ela, no entanto, parecia saber o que estava por vir...
- Eu sei. Estou preocupada porque o parto está chegando. No entanto, me prometa, para eu ir tranqüila para a mesa de operações, que se eu me for, você irá cuidar bem de nossa filhinha. Ela não tem a menor culpa do que está acontecendo...
Com os olhos rasos d’água ele prometeu. Abraçaram-se longamente e ele lhe disse com o coração apertado:
- Não vai acontecer nada disso, você vai ver!
No dia da cesariana o quadro se agravou. Na hora do parto, mesmo com todos os cuidados médicos, a pressão subiu, a mãe entrou em convulsão e não resistiu. No entanto, salvaram o bebê.
Dada a infeliz notícia ao pai ele não quis acreditar. Preferia morrer a viver sem ela. Tomado pela emoção culpou os médicos, o hospital, maldisse a Deus e desesperou-se. Sem a menor condição emocional, não quis ver a filha, que ficou no bercinho aquecido, na maternidade. Passados alguns dias, com o apoio da mãe foi ver a filha. Chegando ao hospital, no rosto da menina, reconheceu a mulher amada:
- Olha só mãe... É igualzinha a ela...
E abraçou-a, mesmo com o coração apertado, com muito amor e carinho. Ele não prometera a mulher amada cuidar dela com carinho e amor? Então assim faria, mesmo com o coração despedaçado.
- Deus lhe dará forças, meu filho. Além disso, todos nós estamos com você. Vamos ajudá-lo a cuidar de nosso tesourinho.
A partir de então, a menina passou a ser sua razão de viver. Vivia e trabalhava para ela. Por causa dela aprendeu a fazer mamadeira, trocar fralda, dar banho, tudo com a ajuda das avós e das tias, que o cercaram de cuidados.
- Esse aí sabe cuidar de criança melhor do que a gente... – riam-se elas.
O tempo cicatriza as feridas. E já se iam cerca de três a quatro anos da morte da esposa. Ele vivia para a menina. A levava e pegava na escola; passeava com ela; ia ao médico; lhe comprava roupinhas... Não tinha mais a esposa, mas a filha alegrava a sua vida. Ria-se de suas palhaçadas e gaiatices. Ficava feliz com suas pequenas descobertas. Na medida do possível era feliz. Tinha a filha, um emprego estável e o carinho dos familiares.
Certo dia, como de hábito, levou a menina à pracinha para brincar. Ela adorava a pracinha. Lá havia balanço, escorrega e amigos para brincar. Ele também brincava com ela, a empurrando no balanço, jogando bola, a esperando na saída do escorrega... Comiam algodão doce, sorvete e tomavam refrigerante. A menina era um encanto. Foi neste dia que o problema aconteceu.
Lá do alto do céu vinha um balão de gás, caindo, caindo... A criançada animou-se para pegar. Quando o pai viu, a criançada corria atrás do balão que caia na pracinha. O pai, quando viu a correria gritou:
- Cuidado filha! Cuidado!...
Não adiantou. A menina animada com o balão que caía saiu em disparada para pegá-lo. O pai gritava, corria atrás dela, mandava ela parar. No seu pensamento, todavia, o pai entrara na brincadeira. E foi assim, feliz, que atravessou a rua sem olhar. Um desastre! O carro não vinha correndo, mas não teve tempo de parar.
A ambulância foi mobilizada com presteza. A menina foi atendida do melhor modo possível, mas o traumatismo craniano foi violento e a menina não resistiu, morrendo a caminho do hospital.
O pai desesperou-se, maldisse a Deus. Sentiu-se injustiçado. Com muito custo foi ao enterro da menina, mas não havia o que o consolasse:
- Eu tinha que ter corrido mais! Eu tinha que ter pego ela! Porque meu Deus? Por quê? Porque não consegui pegá-la?! Vida maldita!
Debulhava-se em lágrimas desesperadas. Primeiro a mulher, depois a filha, que mal teria feito a Deus para merecer este destino?
A família e os amigos, em mais aquele transe doloroso mobilizou-se como podia. Providenciaram médicos, psicólogo, missa e orações. O quanto possível buscavam estar com ele e levantar-lhe o ânimo. Nada entretanto adiantava. Quem sabe o tempo lhe curasse as feridas?
Sentia-se culpado pelo acidente. Este pensamento foi tomando conta de sua mente. Junto com a tristeza e a depressão vieram os inimigos espirituais que lhe sopravam no ouvido:
- Você foi o culpado mesmo. Foi você.. Você... Você que não a olhou direito... Porque não correu mais? Daria para pegá-la...
Martelavam-lhe a mente com pensamentos negativos.
Ele foi se entregando a tristeza. Deixou de se alimentar e perdeu o interesse pela vida. Conseguiu licença médica do trabalho e já não se interessava por mais nada.
A mãe buscava lhe ajudar e levantar-lhe o ânimo, mas sem muito sucesso:
- Você precisa reagir meu filho. Levantar a cabeça. Ir à missa conosco. Vai lhe fazer bem.
- Deus esqueceu de mim mãe. Se esqueceu...
- Não diga isso, meu filho. Deus não se esquece de nenhum de seus filhos, mas às vezes não entendemos seus desígnios.
- Ah mãe. A vida não faz mais sentido para mim...
- Você tem a nós meu filho. Eu, seu pai, suas irmãs, seus amigos, seu trabalho... Você tem que ser forte. Deus irá lhe dar forças para reagir, mas você precisa fazer a sua parte.
- Está certo, mãe... Está certo... Eu vou reagir...
No entanto, se por um lado havia orações, carinho atenção, do outro lado tramavam contra ele:
- Esse já está no papo! É questão de tempo. Este safado... Agora vai ver o que é bom pra tosse...
E prosseguiam com a obsessão. Até que um dia, descontrolado, resolveu dar cabo a vida tomando uma dose cavalar de tranqüilizantes.
- Vai, toma, toma, você vai melhorar... Vai aliviar sua culpa... Culpado... Culpado...
Em péssimo estado de espírito desencarnou, sendo envolvido pelos pensamentos negativos daqueles que o perseguiam. Por alguns anos sofreu na mão daquelas companhias.
Mãe e filha, contudo, espíritos mais evoluídos, encontraram-se na espiritualidade desde o desencarne da filha, que desde este momento foi ajudada pela mãe. De fato, a caminho do hospital, ali na ambulância, onde veio a desencarnar, a filha disse ao pai:
- Olha pai, mamãe veio me buscar. Ela está linda papai. Veja!
Foram suas últimas palavras.
O pai, por sua vez, não acreditava nessas coisas de vida após a morte. Quem sabe, não fosse verdade? No entanto, ali naquele lugar estranho, sujo, maltrapilho, sofrido, com saudade lembrou-se de sua princesinha e pôs-se a orar:
- Ave Maria, cheia de graça... o Senhor é convosco, bendita sois vós, entre as mulheres...
Rezando para Nossa Senhora, pensava nos seus dois amores. Nossa Senhora não era mãe? Ela iria atendê-lo. Rezou ainda com mais fervor e adormeceu. Nos dias seguintes passou a rezar com mais fervor, pois a prece de alguma maneira o acalmava.
A mudança de estado de espírito de nosso amigo, finalmente permitiu que a espiritualidade superior agisse com mais eficiência no seu caso. Nunca o haviam abandonado, mas sua revolta e seu estado vibratório impediam um contato mais efetivo.
Certo dia, uma caravana de amigos espirituais o resgatou sendo levado para tratamento numa reunião mediúnica, onde contou sua estória...
- Eu fui o culpado... o culpado... se eu tivesse corrido mais, teria conseguido..
- Meu filho, não se revolte tanto... Suas preces foram atendidas... Nós tivemos muitas e muitas vidas... No futuro você irá entender a razão destes acontecimentos...
- Por quê... Por quê? Deus se esqueceu de mim... Onde elas estão?...
- Acalme-se meu filho. Onde estão quem?
- Meus tesouros. Minha mulher e minha filha...
- Vamos fazer uma prece... A oração que o pai nos ensinou... Pai nosso, que está no céu...
Ele acompanhou a oração com fervor e, ao seu final, pode enfim ver a mulher e a filha, cercadas de suave luminosidade.
- Minha filha... Meu amor... Deus seja louvado...
Nosso amigo foi levado para tratamento, sendo assistido por seus dois amores. No futuro, poderão encetar novas lutas, mais fortes e unidos.
Quanto à razão dos acontecimentos, só as buscando nos longínquos arquivos das existências.
Que Deus nos ampare, ilumine, para que possamos semear sempre o bem, a paz e o amor.
Muita paz.
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