segunda-feira, 24 de maio de 2010

O companheiro irritado

Ele chegava irritado a nossas reuniões aos sábados de manhã.

- Eu vou partir a cara dele! Vou meter o cacete!

De nossa parte gradativamente tentávamos dissuadi-lo, à medida que freqüentava o trabalho do qual participamos. Ali, na chegada de nossos amigos moradores de rua – música - de modo a preparar o ambiente...

- Fica sempre, um pouco de perfume, nas mãos que oferecem rosas, nas mãos que sabem ser generosas...

- Senhor, fazei de mim um instrumento de sua paz, onde houver ódio que eu leve o amor...

- Você meu amigo de fé, meu irmão camarada...

Depois da cantoria com todos no salão faz-se a prece, em seguida é servido o café da manhã e, na seqüência, os assistidos, como assim os chamamos, são encaminhados para as salas de evangelização, da qual nosso companheiro revoltado participava.

- Eu ia acabar com ele. Só não lhe meti a pedra na cabeça porque me lembrei das lições falando de perdão, mas foi por pouco!

Nosso personagem é pedreiro, estava desempregado e morando na rua. Por conta da bebida havia perdido o emprego e as ferramentas de trabalho. Estava só, revoltado, sujo e maltrapilho. Ainda por cima havia um outro morador de rua, que dormia no mesmo local em que se alojava, a quem não suportava. Por conta desta incompatibilidade ambos não podiam freqüentar a mesma sala de aula. Deste modo, separados, evitávamos problemas entre os dois.

No plano espiritual, entidades que queriam o seu mal estimulavam sua ira.

- Você tem que pegar ele. Aquilo é safado, não presta! Arrebenta com ele. Você é homem ou não é?

Com o tempo e com o envolvimento no trabalho percebemos que muitos dos atuais moradores de rua são espíritos possuidores de débitos contraídos na época da escravidão. Como senhores de engenho ou ligados a eles, separaram muitas famílias de escravos. Agora vivem sozinhos, marginalizados, em condição semelhante àqueles que lhes serviam de mão de obra. E, por terem abusado do poder econômico, também passam por dificuldades materiais. Violentos que foram, ora recebem maus tratos. É a lei de causa e efeito atuando. É a dor transformadora em ação, trabalhando em favor da reforma das criaturas. Nas reuniões de evangelização tratamos destas entidades, implacáveis na sua sede de vingança.

- Ele teve piedade de mim? Porque tenho que perdoá-lo agora? Você não o conhece! Vivia nos maltratando. Separou e destruiu nossas famílias! Porque tenho que ter pena? Pena nada! Eu quero que ele se dane! Quero mais é que sofra!

Na tela mental dos obsessores existe apenas a última encarnação. Toda a violência por que passaram, os maus tratos, o afastamento da família, os abusos, a opressão...Julgam-se no direito de fazer justiça com as próprias mãos, perseguindo os seus antigos algozes.

- Ele está sofrendo é? Pois que sofra! Eu quero o ver na lama! Na lama!

Por mais que se usem os ensinos de Jesus, o caminho até o coração destas entidades é muito difícil, fazendo-se necessária a regressão de memória, a fim de que consigam ver como se comportavam no passado.

- Vamos meu amigo, com a ajuda de Jesus, retornar ao passado. Vamos recordar, lembre-se de onde você vivia, em 1500, 1600... Onde você estava, o que fazia...

Sugestionado pelos doutrinadores e com a ajuda do plano espiritual, esses espíritos podem ver as perseguições por eles desencadeadas, os sofrimentos impostos e o uso desmesurado de seu poder.

- Eu não quero! Não quero voltar...

- É necessário. Veja onde você está. Você já não é mais escravo. Veja as roupas que está usando, o seu poder... Volte... Volte...

Através deste tratamento, aqueles que se julgam perseguidos podem se ver na condição de algozes e entender sua necessidade de transformação.

- É mentira! É mentira! Eu não o matei! Ele é que me perseguiu! É mentira... Não fui eu... Não fui eu... Eu não sabia... Eu não sabia...

- Então meu amigo, até quando vai esta perseguição? Hoje é a sua vez. Amanhã será a dele. E assim por diante. Não é melhor perdoar?

- Mas ele me feriu. Me perseguiu. Arrasou minha família. E agora? Vou deixar pra lá?

- E você? Antes você não lhe tirou a vida? Até quando irá esta perseguição? Isto não terá fim. O perdão é a única alternativa. Somos todos devedores uns dos outros.

Assim como outros, nosso amigo revoltado era ajudado tanto por nós como pelo plano espiritual. Do lado de lá, através do atendimento fraterno a seus algozes e, do lado de cá, suporte espiritual e material.

A fim de ajudá-lo, como havia perdido suas ferramentas de trabalho, fizemos uma vaquinha e lhe compramos novos instrumentos para que pudesse trabalhar. De posse das novas ferramentas, tratou de buscar trabalho e conseguiu. Em princípio apenas biscates, mas com o tempo foi se firmando. Neste percurso teve problemas com a bebida novamente, mas acabou conseguindo controlar o seu vício. Trabalhando com afinco pode alugar um quartinho e mais tarde uma casa. Passou a chegar aos nossos encontros mais desanuviado, com o semblante mais tranqüilo, aos poucos deixando de lado sua dificuldade com o companheiro que outrora tanto detestava.

- Deixa pra lá. Deixa que ele siga o seu rumo. Eu quero é viver em paz.

Tempos depois arrumou uma namorada, que era bastante pesada e, por conta disso, havia feito cirurgia de redução de estômago, mas que não havia tido acompanhamento médico adequado. Então, nosso antigo companheiro revoltado, passou a ter preocupações com a saúde e o tratamento da mulher com quem afinal passou a viver. Ainda o reencontrei algumas vezes, reclamando do trabalho que tinha com sua atual companheira, mas sempre ligado a ela e sua filha que passou a tratar como sua.

Há algum tempo não o vejo. Isto, no entanto, pouco importa. O que vale para mim é poder perceber o efeito transformador do evangelho na vida das criaturas.

Muita paz!

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