domingo, 14 de março de 2010

O magricela

Nasceu magrinho. Mirradinho, coitado. A avó falou: - esse menino não vai vingar! Fizeram rezas e promessas. Enfim, o garoto vingou. Cresceu do mesmo jeito: magricela. Magro e miúdo.

Na escola judiavam dele. Era menorzinho, mas enfezado. Não queria levar desaforo para casa, mas de que jeito? Os maiores se aproveitavam. Não se conformava com aquilo. Ao chegar em casa era a avó, que tinha por ele carinho especial, quem o consolava.

A mãe era lavadeira. O pai pedreiro. Não tinham muito, mas dava pro gasto. Comida não faltava. Mas ele queria mais. Magricela era, porém um dia seria rico. Eles iam ver! Ia ter tênis importado, moto, carro bacana e muitas namoradas. A avó lhe dizia para estudar, mas isso não era o seu forte. Ela insistia, mas o menino era dispersivo.

No futebol era bom de bola, mas com aquele corpinho, na dividida não levava a melhor. Ai dele se fizesse muita firula: logo lhe passavam a perna! Mas eles iam ver. Eles iam ver, assim pensava. Se no futebol que jogava bem não se criava, tinha que haver outro jeito, porque esse negócio de estudo não era pra ele.

A avó insistia, a mãe falava, o pai brigava, mas não conseguiam fazer o garoto estudar. Conselhos e orientação não lhe faltaram. A muito custo cursara até a quinta série. Mais não foi. Seus colegas passavam de ano e ele foi ficando pra trás. Acabou desinteressado pelos estudos.

Já que não tinha dado para os estudos, tinha que trabalhar. Até que tentou, mas com pouca instrução e força física, teve pouco êxito.

No morro onde morava surgiu uma boca de fumo. E o pessoal do tráfico achou que o magricela podia ajudar na distribuição da droga. Mirradinho, pequeno, magricela, não iria chamar a atenção de ninguém. Ele achou o trabalho bom. Não dava para nada mesmo!

Os pais quando souberam não aceitaram de jeito nenhum. Podiam ser gente pobre, mas honesta! O pai chegou a dar uns tapas no menino, mas ele estava acostumado a apanhar. A mãe chorou, ficou desconsolada, mas ele dizia que um dia ela iria entender, que queria tirá-la de cima do tanque de lavar roupa e lhe dar uma vida melhor.

Quanto à avó, esta conversou muito com ele, depois que a confusão acabou. Falou-lhe com amor, como sempre fazia, e lhe fez pensar. Tiveram aquelas conversas que os avós têm com os netos. Ele até decidiu largar aquela vida, mas o pessoal da boca não concordou, botaram a maior pilha e lhe chamaram de vacilão. Mexeram com ele! Também eles iam ver quem era vacilão!

Brigou com o pai, fez a mãe chorar, abraçou a avó e saiu de casa. Ia dar o seu jeito. E continuou como vapor, vendendo suas trouxinhas, na moita. Naquele trabalho começou a se dar bem. Não chamava a atenção, vendia mais que os outros e, se o bicho pegasse, corria muito. O gerente foi vendo que o magricela era sangue bom.

Mas o magricela queria mais. A grana de vapor era pouca. O chefe do morro tinha tudo. E ele? Ia ficar só naquela? Não foi difícil conseguir uma arma e, quando não estava vendendo drogas, passou a assaltar. Foi ganhando moral com o movimento, já não era mais vacilão e passaram a ter um certo respeito por ele.

E agora? E aquela galera que lhe quebrava no futebol, que implicava com ele, que lhe dava porrada na escola? E aí? Agora ele iria acertar as contas.

O tempo passou e ele virou o bicho. Magrinho podia ser, mas quem é que metia as cabeças com ele? Magricela o cacete. Ele era sujeito homem. Enfrentava a polícia, os rivais, passava o rodo. Magrinho é o escambau!

E foi acertando as contas com o pessoal que havia judiado dele, sem dó. Quem mandou? Ele não havia dito que não ficaria assim? Não avisou?

Passou a ter grana, namorada, moto, tudo como queria. E os manés? Continuavam ralando, ganhando mixaria. Foi ficando muito senhor de si. E foi aí que dançou. Ganhara muitos inimigos, não podia dar mole, mas deu.

Certo dia, na saída de um boteco, depois de tomar umas cervejas, num dia comum, quando achava que não iria acontecer nada, foi surpreendido pelo pessoal do outro morro. Eles queriam pegá-lo. Ele não era matador? Não era bom no dedo? Mesmo grogue ele e seu pessoal reagiram, mas enfim, como diziam, tombou.

E, desencarnado, aqueles cuja vida havia tirado, passaram a lhe perseguir. Envolvidos pelo ódio aqueles espíritos endurecidos se engalfinhavam. Viviam às turras, nas profundezas das zonas umbralinas. Colhia agora tudo que havia plantado.

Vivia num ambiente escuro, pesado e não entendia o que se passava com ele. Tentara falar com seus antigos comparsas, mas não lhe deram a menor atenção. Falavam dele como se estivesse morto, mas ele se sentia vivo.

Sem saber onde estava, sem suas armas, sem seus comparsas, se tornou o magricela de novo, objeto da judiação dos outros. Pega ele, pega ele. Pega esse traste. Desce o bambu nele. Espeta, tira o couro dele. Virou repasto e divertimento dos outros.

Passou muito tempo assim, apanhando, brigando, levando pancada, sendo objeto de escárnio. E as lembranças? Passou a se lembrar dos crimes que havia cometido, das vítimas, que tantas vezes lhe apareciam para agora, na sua vez, acertar as contas com ele. E tome pancada, tome açoite, tome ofensa. Ele não era macho?

Suas feridas, decorrentes dos tiros que recebera na tocaia que armaram para ele e das pancadas que levara não cicatrizavam. E foi fraquejando, fraquejando, até que o deixaram de lado.

Passou a morar numa gruta escura e fétida, num local que mal conhecia. Dali podiam se escutar os gemidos dos outros sofredores. Ali estando, foi revendo dia a dia os passos que dera na vida. Relembrou o pai trabalhando duro, a mãe lavando roupa, a avó lhe dando bons conselhos, lhe dizendo palavras de amor ao pé do ouvido. Porque não lhe escutara? Porque não seguira outros caminhos? Dia a dia ia revendo seus atos, se remoendo de dor, de sofrimento, de lágrimas e de remorso.

Vez por outra, via uma luz distante, como se fora uma caravana. E lhe disseram que eram os “homens de branco”, espíritos que vinham ajudar. Mas que espírito nada! Espírito não existia. Ele estava muito vivo. Só não sabia o que estava acontecendo. Será que tinha ficado doido? Que tinha perdido o juízo? E passou a gargalhar uma gargalhada nervosa. Gargalhava, chorava, se contorcia de dor. Será que o seu sofrimento não passaria nunca?

Certo dia adormeceu profundamente. E sonhou com a avó. Ela lhe aparecia diferente, iluminada, como nunca tinha visto. Ele se desesperou, queria agarrar-se a ela, mas não conseguia. Ela lhe recomendava paciência, que rezasse a Deus, que pedisse ajuda a Jesus. Acordou sobressaltado, nunca rezara, pelo menos não lembrava. E ficou ensimesmado. Teria morrido mesmo? E aquele lugar estranho?

Um dia, depois de muito sofrer, lembrou-se de Deus. E com lágrimas no rosto, dizia: - Deus, Deus, não me abandone, eu sei que errei, que errei muito, me perdoe, me perdoe, me ajude, Jesus me acuda. Ficou neste estado durante algum tempo. E lembrou-se novamente da avó, desta vez de modo claro, na sua infância, que certo dia lhe ensinara a rezar. A voz dela ecoava em sua mente lhe dizendo: Pai nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino... Era o Pai Nosso. Ele se lembrara a oração que a avó lhe ensinara. Passou a orar com fervor e sentia-se melhor. A avó voltou a aparecer-lhe nos pensamentos e a recomendar paciência.

Um dia, ele ouviu um alarido. Eram os “homens de branco”. Enfim teve esperanças, quem sabe não seria ajudado? E fez sua prece com fervor. Observou que a caravana vinha em direção à região em que vivia. Vinha devagar, com segurança, protegida por batedores que vinham à frente. Será que iriam ajudá-lo?

Pararam na região onde estava e passaram a fazer uma espécie de chamada. As criaturas convocadas eram ajudadas e colocadas em veículos semelhantes a ambulâncias, que eram de um jeito com ele nunca vira. Será que o chamariam também. Foi então que ouviu uma voz conhecida, lhe chamando pelo nome. Era sua avó, iluminada e bela. Caiu de joelhos, afagou-lhe os braços, lhe pediu perdão e afinal adormeceu.

Por necessário, manifestou-se numa reunião mediúnica, quando conheci sua estória.

Quanto à avó, prepara seu retorno à Terra, na condição de mãe de seu amado neto, quando espera orientar e permitir-lhe a oportunidade de começar a retificar os muitos erros cometidos.

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